domingo, 30 de maio de 2010

O corcel branco

Ontem, depois de assistir um filme, lembrei do dia em que meus avós dançavam no quarto às vésperas do São João. O rádio tocava baixinho Riacho do Navio de Luis Gonzaga. Guardo essa cena como quem guarda o melhor pedaço da vida. Por sorte eu usufruía de um ângulo que impossibilitava o flagrante. Fiquei ali até que a música findasse. Eram dois velhos movendo seus corpos sem a mínima fração de ânsia, duas pessoas que dificilmente teriam ainda o que dizer um ao outro. Lembro que poucos meses depois eu estava encarregado de dirigir o carro do velho, um corcel branco enfurnado de baratas, caindo os pedaços. Um câncer comia-lhe as tripas e eu fora designado a dar assistência à família. A tarefa consistia em levar e trazer minha avó, minhas tias e minha mãe à UTI de um hospital na Ilha do Leite. Assim como aquele velho corcel, meu avô não tinha direção hidráulica, era bruto como uma caixa de ferramentas e talvez por isso mesmo capaz de surpreender as todos com os gestos mais singelos.

No quinto dia de sua internação, como ninguém quisesse entrar na UTI, por desejo do meu próprio avô, pediram que eu fosse porque ainda não tinha o visto em tal situação. Talvez ele estivesse fadigado por ver as mesmas expressões nas mesmas caras, pensavam. Ninguém aceitava que ele estava morrendo. O mito do último contato, da última palavra, quando o sujeito se encontra desvelado de suas mascaras sempre percorreu o imaginário coletivo. Dizem que Goethe clamava por “mais luz!”; Tomas Hobbes dizia-se “diante de um terrível salto nas trevas.”; até Nietzche temia publicamente: “Se realmente existe um Deus vivo, sou o mais miserável dos homens.” Eu me sentia culpado por estar violando o desejo daquele homem de não ser importunado com a piedade alheia. Entrei a contra gosto. Tentei não notar a infinidade de tubos que lhe desfiguravam o rosto; cumprimentei-o de maneira ridícula; segurei-lhe a mão e, covardemente, esperei pela iniciativa de um resquício de ser vivo que agonizava na cama. Os poucos segundos que passaram foram os mais mórbidos que já presenciei. Quando então percebi que a boca dele estava prestes a se mexer, curvei-me para ouvi-lo. “A correia do carro precisa ser trocada”, ele me disse baixinho. Foram as suas únicas palavras, as últimas dele para mim. Um dia depois ligaram do hospital de manhã cedo. Aposto que Goethe, Hobbes, Nietzche e a maioria dos grandes homens invejariam a incorruptibilidade daquela frase: “a correia do carro precisa ser trocada”. Prometi a mim mesmo que passado as resoluções funerárias eu iria a um mecânico.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Anti-Romance

[...] Só à base de romances nenhum espírito consegue evoluir. O prazer que tal leitura pode oferecer não compensa o desgaste do caráter. Com os romances aprendemos a nos meter nos sentimentos de toda espécie de gente. Daí, adquire-se um gosto pela mudança contínua. Facilmente, convertemo-nos nos personagens que nos agradam. Todo e qualquer comportamento passa a ser compreensível. Docilmente, entregamo-nos a propósitos alheios, e assim perdemos de vista, por muito tempo, os nossos próprios. Romances são cunhas que o autor – um comediante que escreve – faz penetrar na personalidade compacta de seus leitores. Quanto mais exatos seus cálculos sobre o tamanho da cunha e a capacidade de resistência, maior a fenda na personalidade. Os romances deveriam ser proibidos pelo Estado.
(trecho de Auto-de-Fé, de Elias Canetti)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

O velho Jenuário e nossa nudez pela metade

Todo o santo dia o velho se arrastava até o rio pouco antes do anoitecer dando a impressão exata do tempo. Seu Pedro Jenuário devia ter uns oitenta anos àquela altura. Vivia numa casa de barro ao lado do nosso sítio. Na beira do rio, sentava-se na ponta do barco e arremessava a linhada. Usava sempre mandioca como isca, pois era o que havia ali. Talvez como conseqüência disso, raramente pegava alguma coisa, eu pessoalmente nunca o vi fisgar absolutamente nada. Às vezes estávamos jogando futebol ou brincando com Dick, o cachorro, e ele chegava sem alarde. Parecia um enviado de outra era geológica. Deitava-se no chão como se fosse o último gesto de sua existência e puxava alguma prosa. Falava geralmente do tempo, que numa outra época havia fartura, etc. O cachorro sempre latia com a chegada dele.
Ele era pai de Didi, o caseiro do sítio, e avô de Seu Blau, que já carregava o “Seu” desde os seis anos. Didi era engenhoso, o único nativo com antena parabólica da Tapera, - fazia coisas incríveis com meio metro de arame e um alicate. Segundo meu pai, um preguiçoso! Andava com uma farda do exército e gostava de descrever o desenrolar de uma guerra imaginária. Sabíamos da farsa, mas acreditávamos nele. Estávamos lá apenas nos fins de semana, para fazer churrasco, andar à caiaque, nadar, pescar... Mas com o passar do tempo meus pais foram perdendo o gosto, alguma coisa tinha mudado. Seu Jenuário já estava morto a essa altura e meu irmão e eu mais vivos quê nunca. Agora, preferíamos ir com nossos amigos. Fazíamos churrasco, enchíamos a cara e roubávamos a inocência das meninas da vila. Não acreditávamos mais nas estórias de Didi. Os tempos eram outros.
Porém, pouco antes da era do ceticismo, lembro do dia em que o velho Jenuário, à beira do fim, estava no barco pescando e num ato contínuo tirou a roupa e jogou-se ao rio. Eu estava a alguns metros dali com uma namoradinha qualquer que, profundamente ruborizada, sugeria que fossemos embora. Aquele ser humano desprovido de qualquer magnitude me sensibilizava de alguma forma, mas sem relutância eu atendi ao pedido da moça. Mais tarde, no quarto dos meus pais, não pude evitar o sorriso ao arrancar-lhe a roupa. O velho Jenuário já tinha virado comida de peixe.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Dante e Depois

CENA 01
Sonora
-
Meus irmãos, nossa missão terrena é a de, através da prece, enveredar as almas desnorteadas nos caminhos que levam à ilimitada paz, à ilimitada luz e ao ilimitado amor.
CENA 02 Externa (Centro da cidade – Dia)
Dante percorre calçada turbulenta no centro da cidade. De repente, pára e olha para um cartão que segura. O homem esta à procura de um endereço. Continua andando até parar em frente a um prédio. Observa intrigado de cima a baixo. (câmera faz plano de visão de Dante e depois do prédio – em seguida de cima do prédio faz visão panorâmica da cidade). Dante entra no prédio, o elevador já o aguarda assim como as pessoas dentro que o olham esquisito.
Entra no elevador que se fecha
(tela preta):
-
No meio do caminho da sua vida, Dante, tendo-se perdido numa floresta obscura, tenta em vão subir a uma colina luminosa: três feras, que simbolizam as concupiscências humanas, impedem-lhe o passo.
CENA 03 Elevador (maquinista, casal e Dante)
Dante: Boa tarde (ninguém responde)
Elevador quebra
Maquinista nem tenta consertar, Dante olha pra ele e esboça uma pergunta, mas não a faz. O casal começa a se beijar e acariciar sem pudores. Dante fica com cara de idiota sem ação.
CENA 04 Externa (Igreja na Maciel Pinheiro – Rua do Hospício)
Câmera percorre alguns mendigos e vendedores ambulantes que se estabelecem em frente à igreja. Dentro dela, Beatriz ajoelhada reza em silêncio olhando melancolicamente para a imagem da virgem Maria. Ela levanta-se pesarosa e sai da igreja. Zoom na mão de Beatriz que carrega um cartão com endereço.
CENA 05 Interna (Sessão espírita, Luz baixa)
Câmera circunda a mesa redonda pegando pacientemente a fisionomia de cada pessoa sentada. A mesa é ocupada por seis pessoas, estão entre eles Dante e Beatriz. Todos estão de olhos fechados menos um homem inquieto e de pé. O médium larga a mão dos outros e se dirige ainda de olhos fechados e com densidade ao homem que anda de um lado para outro. Está possuído por uma entidade e tem voz destoante.
Médium:
- Irmão, por favor, dái a vossa manifestação.
Possuído:
- Dou não
Médium:
- Irmão, sabe acaso onde estais?
Possuído:
- Sei não
Médium:
-
Estais entre irmãos, irmão.
Possuído:
-
Se nunca tive pai, como posso ter irmãos? Nasci numa lata de lixo.
Médium:
-
Dizei ao menos qual o vosso mal e o que desejas de nós. Tudo faremos para ajuda-lo na obtenção de sua graça.
Possuído
- Eu quero um cu
Médium (abrindo os olhos)
- Que dizes irmão?
Possuído
- Uma palavra: cu
Médium
-
Queres dizer angu, tatu...sururu, mandacaru...?
Possuído(socando a mesa e interrompendo)
-
Só quero um cu, no singular
Médium
- Vosso nome irmão.
Possuído
- Cu
Uma senhora velha levanta com dificuldade e vai de encontro ao médium suplicante.
Senhora
- Eu sei o nome dele irmão
Médium
-
Pois então diga logo
Senhora
-
É Gemerário, irmão. Passou a vida me pedindo isso. Tantos e tantas dão por gosto, sem precisar pedir. Agora o coitado purga por mim, pelo negado. Se eu tivesse dado estaria em paz. Misericórdia! O que eu faço meu Deus. É tudo minha culpa! Não agüento viver com isso!
(Após longo silêncio, todos, menos o médium a velha e o possuído, dão as mãos fecham os olhos e começam a rezar o pai nosso. Sonora em off)
Câmera do teto para a mesa circular: sonora.
Repete sonora do inicio:
- Meus irmãos, nossa missão terrena é a de, através da prece, enveredar as almas desnorteadas nos caminhos que levam à ilimitada paz, à ilimitada luz e ao ilimitado amor.
CENA 05 Interna (Mesmo lugar, em close)
Dante flerta timidamente com Beatriz nesse momento.

FIM.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

A bola que nunca parou de pingar

Eu encontraria a maldita pingando na altura mais conveniente. Era o meu melhor golpe, o que eu me considerava infalível. Entretanto, naquela tarde de 23 de setembro de 1997 as coisas não saíram como de praxe. Eu acertei o travessão bem no centro de sua testa e a rede pública venceu a rede privada após anos de frustração. Até hoje tento lembrar o nome daquele colégio, provavelmente um nome composto. Alguma coisa com Humberto ou Idalino no meio, se fosse Leão eu lembraria pelo slogan do “entra burro e sai ladrão”. O que nunca me deixou em paz foi àquela bola pingando na minha frente a exatos dois palmos do chão, ainda sou capaz de sentir a maldita no peito do meu pé.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

A síndrome do sorry

A palavra desculpa era um velho elefante de circo na minha garganta apesar de eu pronunciá-la ao inimigo ou o inimigo a mim. Como quando o animal faz a pirueta aparentando profundo tédio.

Eu estava acomodado de pé por falta de assento e tinha as mãos em duas barras de ferro para não ser traído pela inércia. Simples ocasião cotidiana não fosse o fato de ter ouvido num curto espaço de tempo três pessoas se desculpando ao tocarem em mim e um outro antes mesmo disso quando antecipou a eminência do contato. Sorry... sorry ... sorry... sorry. Sem saber o porquê balbuciei nas duas primeiras um “you’re welcome” sem o menor sentido. Nas outras duas achei na hora que eles se dirigiam a outra pessoa ou a algo inanimado. Aquele monte de desconhecidos tombando seus corpos num único sentido.

Com pouco êxito eu tentava combinar algo com Shumpei Sato, um japonês de um metro e meio residente da mesma casa onde eu passaria meu primeiro mês em Londres. Não sei bem se ele contabilizou as desculpas do metrô. Lembro apenas que ele queria fazer uma refeição rápida, eu andar pelas ruas; ele queria ouvir jazz numa megastore, eu buzinas, vozes e uma refeição decente. Nos encontramos mais tarde em casa. Ele comprou creme de barbear e xampu, eu comprei duas blusas de frio e fiz um trocadilho idiota (shumpei – xampu). Uma semana mais tarde, ao adentrar na mesma estação de onde partimos pela primeira expedição, o japonês perderia um membro frontal de seu sorriso ao esbarrar em dois fans de rúgbi - segundo suposição preconceituosa do próprio. Contou-me ainda não ter ouvido a menor verbalização de arrependimento enquanto tombava de costas banguela.

Durante todo o passeio diurno pelas ruas inúmeras vezes me deparei com alguém se desculpando por algum motivo que quando não me era estranho me era insignificante. Cheguei mesmo a pisar no pé de um jovem e ouvir dele as desculpas. Lembrei na ocasião de ter lido algum antropólogo brasileiro exaltando nossa ilusão racial. Pensei comigo o que costumava pensar nas aulas de teoria da comunicação do meu curso de jornalismo: quantas calorias eram gastas em média numa aula de noventa minutos. Eu sabia que aquele sorry independia de energia. Não era necessário escândalo, quero dizer. Uma cena, uma alteração de voz, um pelo amor de Deus. Nesse exato momento eu percebia que faltariam Palhares e Osvaldinhos naquela repartição do mundo. Isso me trazia um gosto amargo de sangue na boca. A minha solidão era a do funcionário público, mas sem o subterfúgio do exagero. Achei melhor voltar pra casa.

Na ultima semana trabalhei cinqüenta e seis horas a cinco libras e setenta e dois pences por hora, façam as contas. Os dias correm soltos à medida que troco as sacolas plásticas do lixo e recolho as bandejas antes do ataque dos pássaros. Os caras do stock também devo ajudar. As mães chegam às tulhas ao parque. Tomam seus chás e cafés e muffins, a partir dos quais se descuidam e seus pequenos derrubam o sorvete, geralmente de vanilla. Eu devo tomar providências quando isso acontece independente do sabor. A melhor parte é varrer o chão do parque. Ao todo contabilizo trinta libras e vinte e três pences, uma carteira, um dinossauro de pelúcia e uma bola de futebol em miniatura. Shumpei, o japonês adorador de Charlie Parker, mudou-se e nunca mais tive noticias dele. A não ser que lhe roubaram a pasta com todos os documentos enquanto cochilava num trem. Um amigo em comum da escola me reportou o fato.

Em relação às desculpas agora as distribuo a certa medida. Outro dia o big manager soltou: “Today you look a british gentleman!”. “Okay”, retribui e sem perder o fôlego acrescentei: “Sorry about yesterday… I didn’t have time to shave me”.

terça-feira, 21 de julho de 2009

O clichê

O porta-malas do carro abria-se e eu estava defronte à TV assistindo ao pornô. Ainda lembrava aliviado do chacoalhar da chave abrindo o compartimento. Lá dentro, os segundos tinham a dimensão da minha claustrofobia. “O Fidji não vai permitir esse horror de gente, alguém tem que se esconder”. Em pânico após os primeiros dez segundos, eu ouvia o diálogo sobre as suítes, as regalias e se teria desconto. Suíte quarenta e sete, uma e quarenta da madrugada. Fez-se a luz.
Havia neblina no quarto. Eu estava de cuecas preenchendo as garrafas de cerveja vazias com água extraída da banheira. Era possível que elas passassem por não consumidas no fechamento da conta. Rivaldo deixara o chuveiro quente aberto e a queda brusca de temperatura embasara-lhe os óculos.
- Me larga, dizia uma das garotas sob o edredom.
- Qual é? Persuadia Viana sob o edredom.
O ralo entupira sem que ninguém percebesse e Rivaldo, após o insucesso do edredom, dizia crer numa conspiração da indústria de desodorantes. Poderíamos percebê-la, segundo ele, na conduta unilateral do discurso da mídia quando o assunto eram as mudanças climáticas. Uma lâmina de água formava-se decorrente do entupimento do ralo.
- Chega aí, venha escutar isso.
- Fodge, fodge, me fodge.
Divertia-nos o carioquês do cinema pornô nacional e fazia-nos perguntar onde estaria o Amazonas e o Tocantins. “Mas o Rio Grande do Sul exporta modelos”, alguém dizia. Gradativamente ninguém mais se deixava estar num único canto. Perambulavam de galho em galho. Da banheira para a cama, da cama para a mesa, da mesa para a privada, da privada para o cavalo, do cavalo para a janela. Éramos pássaros. Eu torcia em silêncio para que voássemos alto até nos perdermos no vento, mas pensava que talvez fossemos, ao invés de curiós e juritis, pombas urbanas demais pra grandes desapegos.
Em meio aos saltos, Rivaldo deu-se conta que por falta de fósforos não fumava há horas. Tendo recorrido ao telefone por três vezes sem êxito, cobriu-se com o roupão Fidji e corrigindo o fio-dental que se formara pela rapidez do sobressalto tomou a direção da portaria para exigir providências.
- Qual o cúmulo do clichê Viana? Fala aí? Perguntava Rivaldo eufórico e sem fósforos voltando da portaria.
- Não, você só pode estar brincando? Esbugalhava-se o outro.
- FUDENDO MEU VELHO, A MULHER DA PORTARIA TAVA FUDENDO, gritou Rivaldo histérico.
- CARALHO! Se clichê fosse dinheiro tu tava feito, tu seria o imposto de renda - gargalhavam os dois descontrolados. Após nova tentativa ao telefone, quando enfim se recompôs da imagem, Rivaldo finalmente obtinha a atenção dos funcionários do Motel. Os dois dividiam um trago entre risos.
Em poucas horas um rastro de luminosidade recortaria a janela denunciando a proximidade do fim da diária. Não tínhamos dinheiro para um café da manhã, a voz cansada do telefone informava que o mesmo não era incluso nas quartas-feiras como o era nos fins de semana. Mario de Andrade se enganava ao dizer que só se reconhece um amigo nas quartas-feiras. Era hora de deixar o quarto. Chaves, meias, calças, carteiras e uma nota surgida da janela mágica. As aventuras de Bob Esponja num canal aberto davam um tom infantil à cena. Coincidência ou não, a essa altura a lâmina de água acariciava as nossas batatas, mas não parecia haver em ninguém a mínima sensação de pântano.