quarta-feira, 29 de julho de 2009

A bola que nunca parou de pingar

Eu encontraria a maldita pingando na altura mais conveniente. Era o meu melhor golpe, o que eu me considerava infalível. Entretanto, naquela tarde de 23 de setembro de 1997 as coisas não saíram como de praxe. Eu acertei o travessão bem no centro de sua testa e a rede pública venceu a rede privada após anos de frustração. Até hoje tento lembrar o nome daquele colégio, provavelmente um nome composto. Alguma coisa com Humberto ou Idalino no meio, se fosse Leão eu lembraria pelo slogan do “entra burro e sai ladrão”. O que nunca me deixou em paz foi àquela bola pingando na minha frente a exatos dois palmos do chão, ainda sou capaz de sentir a maldita no peito do meu pé.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

A síndrome do sorry

A palavra desculpa era um velho elefante de circo na minha garganta apesar de eu pronunciá-la ao inimigo ou o inimigo a mim. Como quando o animal faz a pirueta aparentando profundo tédio.

Eu estava acomodado de pé por falta de assento e tinha as mãos em duas barras de ferro para não ser traído pela inércia. Simples ocasião cotidiana não fosse o fato de ter ouvido num curto espaço de tempo três pessoas se desculpando ao tocarem em mim e um outro antes mesmo disso quando antecipou a eminência do contato. Sorry... sorry ... sorry... sorry. Sem saber o porquê balbuciei nas duas primeiras um “you’re welcome” sem o menor sentido. Nas outras duas achei na hora que eles se dirigiam a outra pessoa ou a algo inanimado. Aquele monte de desconhecidos tombando seus corpos num único sentido.

Com pouco êxito eu tentava combinar algo com Shumpei Sato, um japonês de um metro e meio residente da mesma casa onde eu passaria meu primeiro mês em Londres. Não sei bem se ele contabilizou as desculpas do metrô. Lembro apenas que ele queria fazer uma refeição rápida, eu andar pelas ruas; ele queria ouvir jazz numa megastore, eu buzinas, vozes e uma refeição decente. Nos encontramos mais tarde em casa. Ele comprou creme de barbear e xampu, eu comprei duas blusas de frio e fiz um trocadilho idiota (shumpei – xampu). Uma semana mais tarde, ao adentrar na mesma estação de onde partimos pela primeira expedição, o japonês perderia um membro frontal de seu sorriso ao esbarrar em dois fans de rúgbi - segundo suposição preconceituosa do próprio. Contou-me ainda não ter ouvido a menor verbalização de arrependimento enquanto tombava de costas banguela.

Durante todo o passeio diurno pelas ruas inúmeras vezes me deparei com alguém se desculpando por algum motivo que quando não me era estranho me era insignificante. Cheguei mesmo a pisar no pé de um jovem e ouvir dele as desculpas. Lembrei na ocasião de ter lido algum antropólogo brasileiro exaltando nossa ilusão racial. Pensei comigo o que costumava pensar nas aulas de teoria da comunicação do meu curso de jornalismo: quantas calorias eram gastas em média numa aula de noventa minutos. Eu sabia que aquele sorry independia de energia. Não era necessário escândalo, quero dizer. Uma cena, uma alteração de voz, um pelo amor de Deus. Nesse exato momento eu percebia que faltariam Palhares e Osvaldinhos naquela repartição do mundo. Isso me trazia um gosto amargo de sangue na boca. A minha solidão era a do funcionário público, mas sem o subterfúgio do exagero. Achei melhor voltar pra casa.

Na ultima semana trabalhei cinqüenta e seis horas a cinco libras e setenta e dois pences por hora, façam as contas. Os dias correm soltos à medida que troco as sacolas plásticas do lixo e recolho as bandejas antes do ataque dos pássaros. Os caras do stock também devo ajudar. As mães chegam às tulhas ao parque. Tomam seus chás e cafés e muffins, a partir dos quais se descuidam e seus pequenos derrubam o sorvete, geralmente de vanilla. Eu devo tomar providências quando isso acontece independente do sabor. A melhor parte é varrer o chão do parque. Ao todo contabilizo trinta libras e vinte e três pences, uma carteira, um dinossauro de pelúcia e uma bola de futebol em miniatura. Shumpei, o japonês adorador de Charlie Parker, mudou-se e nunca mais tive noticias dele. A não ser que lhe roubaram a pasta com todos os documentos enquanto cochilava num trem. Um amigo em comum da escola me reportou o fato.

Em relação às desculpas agora as distribuo a certa medida. Outro dia o big manager soltou: “Today you look a british gentleman!”. “Okay”, retribui e sem perder o fôlego acrescentei: “Sorry about yesterday… I didn’t have time to shave me”.

terça-feira, 21 de julho de 2009

O clichê

O porta-malas do carro abria-se e eu estava defronte à TV assistindo ao pornô. Ainda lembrava aliviado do chacoalhar da chave abrindo o compartimento. Lá dentro, os segundos tinham a dimensão da minha claustrofobia. “O Fidji não vai permitir esse horror de gente, alguém tem que se esconder”. Em pânico após os primeiros dez segundos, eu ouvia o diálogo sobre as suítes, as regalias e se teria desconto. Suíte quarenta e sete, uma e quarenta da madrugada. Fez-se a luz.
Havia neblina no quarto. Eu estava de cuecas preenchendo as garrafas de cerveja vazias com água extraída da banheira. Era possível que elas passassem por não consumidas no fechamento da conta. Rivaldo deixara o chuveiro quente aberto e a queda brusca de temperatura embasara-lhe os óculos.
- Me larga, dizia uma das garotas sob o edredom.
- Qual é? Persuadia Viana sob o edredom.
O ralo entupira sem que ninguém percebesse e Rivaldo, após o insucesso do edredom, dizia crer numa conspiração da indústria de desodorantes. Poderíamos percebê-la, segundo ele, na conduta unilateral do discurso da mídia quando o assunto eram as mudanças climáticas. Uma lâmina de água formava-se decorrente do entupimento do ralo.
- Chega aí, venha escutar isso.
- Fodge, fodge, me fodge.
Divertia-nos o carioquês do cinema pornô nacional e fazia-nos perguntar onde estaria o Amazonas e o Tocantins. “Mas o Rio Grande do Sul exporta modelos”, alguém dizia. Gradativamente ninguém mais se deixava estar num único canto. Perambulavam de galho em galho. Da banheira para a cama, da cama para a mesa, da mesa para a privada, da privada para o cavalo, do cavalo para a janela. Éramos pássaros. Eu torcia em silêncio para que voássemos alto até nos perdermos no vento, mas pensava que talvez fossemos, ao invés de curiós e juritis, pombas urbanas demais pra grandes desapegos.
Em meio aos saltos, Rivaldo deu-se conta que por falta de fósforos não fumava há horas. Tendo recorrido ao telefone por três vezes sem êxito, cobriu-se com o roupão Fidji e corrigindo o fio-dental que se formara pela rapidez do sobressalto tomou a direção da portaria para exigir providências.
- Qual o cúmulo do clichê Viana? Fala aí? Perguntava Rivaldo eufórico e sem fósforos voltando da portaria.
- Não, você só pode estar brincando? Esbugalhava-se o outro.
- FUDENDO MEU VELHO, A MULHER DA PORTARIA TAVA FUDENDO, gritou Rivaldo histérico.
- CARALHO! Se clichê fosse dinheiro tu tava feito, tu seria o imposto de renda - gargalhavam os dois descontrolados. Após nova tentativa ao telefone, quando enfim se recompôs da imagem, Rivaldo finalmente obtinha a atenção dos funcionários do Motel. Os dois dividiam um trago entre risos.
Em poucas horas um rastro de luminosidade recortaria a janela denunciando a proximidade do fim da diária. Não tínhamos dinheiro para um café da manhã, a voz cansada do telefone informava que o mesmo não era incluso nas quartas-feiras como o era nos fins de semana. Mario de Andrade se enganava ao dizer que só se reconhece um amigo nas quartas-feiras. Era hora de deixar o quarto. Chaves, meias, calças, carteiras e uma nota surgida da janela mágica. As aventuras de Bob Esponja num canal aberto davam um tom infantil à cena. Coincidência ou não, a essa altura a lâmina de água acariciava as nossas batatas, mas não parecia haver em ninguém a mínima sensação de pântano.