quarta-feira, 22 de julho de 2009

A síndrome do sorry

A palavra desculpa era um velho elefante de circo na minha garganta apesar de eu pronunciá-la ao inimigo ou o inimigo a mim. Como quando o animal faz a pirueta aparentando profundo tédio.

Eu estava acomodado de pé por falta de assento e tinha as mãos em duas barras de ferro para não ser traído pela inércia. Simples ocasião cotidiana não fosse o fato de ter ouvido num curto espaço de tempo três pessoas se desculpando ao tocarem em mim e um outro antes mesmo disso quando antecipou a eminência do contato. Sorry... sorry ... sorry... sorry. Sem saber o porquê balbuciei nas duas primeiras um “you’re welcome” sem o menor sentido. Nas outras duas achei na hora que eles se dirigiam a outra pessoa ou a algo inanimado. Aquele monte de desconhecidos tombando seus corpos num único sentido.

Com pouco êxito eu tentava combinar algo com Shumpei Sato, um japonês de um metro e meio residente da mesma casa onde eu passaria meu primeiro mês em Londres. Não sei bem se ele contabilizou as desculpas do metrô. Lembro apenas que ele queria fazer uma refeição rápida, eu andar pelas ruas; ele queria ouvir jazz numa megastore, eu buzinas, vozes e uma refeição decente. Nos encontramos mais tarde em casa. Ele comprou creme de barbear e xampu, eu comprei duas blusas de frio e fiz um trocadilho idiota (shumpei – xampu). Uma semana mais tarde, ao adentrar na mesma estação de onde partimos pela primeira expedição, o japonês perderia um membro frontal de seu sorriso ao esbarrar em dois fans de rúgbi - segundo suposição preconceituosa do próprio. Contou-me ainda não ter ouvido a menor verbalização de arrependimento enquanto tombava de costas banguela.

Durante todo o passeio diurno pelas ruas inúmeras vezes me deparei com alguém se desculpando por algum motivo que quando não me era estranho me era insignificante. Cheguei mesmo a pisar no pé de um jovem e ouvir dele as desculpas. Lembrei na ocasião de ter lido algum antropólogo brasileiro exaltando nossa ilusão racial. Pensei comigo o que costumava pensar nas aulas de teoria da comunicação do meu curso de jornalismo: quantas calorias eram gastas em média numa aula de noventa minutos. Eu sabia que aquele sorry independia de energia. Não era necessário escândalo, quero dizer. Uma cena, uma alteração de voz, um pelo amor de Deus. Nesse exato momento eu percebia que faltariam Palhares e Osvaldinhos naquela repartição do mundo. Isso me trazia um gosto amargo de sangue na boca. A minha solidão era a do funcionário público, mas sem o subterfúgio do exagero. Achei melhor voltar pra casa.

Na ultima semana trabalhei cinqüenta e seis horas a cinco libras e setenta e dois pences por hora, façam as contas. Os dias correm soltos à medida que troco as sacolas plásticas do lixo e recolho as bandejas antes do ataque dos pássaros. Os caras do stock também devo ajudar. As mães chegam às tulhas ao parque. Tomam seus chás e cafés e muffins, a partir dos quais se descuidam e seus pequenos derrubam o sorvete, geralmente de vanilla. Eu devo tomar providências quando isso acontece independente do sabor. A melhor parte é varrer o chão do parque. Ao todo contabilizo trinta libras e vinte e três pences, uma carteira, um dinossauro de pelúcia e uma bola de futebol em miniatura. Shumpei, o japonês adorador de Charlie Parker, mudou-se e nunca mais tive noticias dele. A não ser que lhe roubaram a pasta com todos os documentos enquanto cochilava num trem. Um amigo em comum da escola me reportou o fato.

Em relação às desculpas agora as distribuo a certa medida. Outro dia o big manager soltou: “Today you look a british gentleman!”. “Okay”, retribui e sem perder o fôlego acrescentei: “Sorry about yesterday… I didn’t have time to shave me”.

3 comentários:

  1. Muito bom, paquitinho virtual! No início, lendo o título do texto, tive meio que um ataque psicossomático,porque a palavra "síndrome" me lembra "pânico". Talvez enviesada, me senti egoniada, me imaginando em tamanho tumulto internacional. Mas como já no início tu avisou que hoje em dia não é mais "aquele amendrontado todo", o texto pareceu ser mais esperançoso para qualquer claustrofóbico e/ou misantropo.
    Por fim, esse relativismo do "sorry" fatalmente me soou familiar a um certo "perdoa-me por me traíres". :)

    Beijões

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  2. devo dizer que, apesar de me imaginar no teu lugar e sentir o desconforto da situação, não pude deixar de rir com aqueles dois "you're welcome". porque é bem o tipo de coisa que eu diria (e que me faria dizer "sorry I'm laughing", se eu não conseguisse controlar minha crise de riso de mim mesma).

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